in
Público, 21/6/2012
Santana Castilho*
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Senhor
ministro:
Como
sabe, uma carta aberta é um recurso retórico. Uso-o, agora que se cumpre um ano
sobre a sua tomada de posse, para lhe manifestar indignação pelas opções
erradas que vem tomando e fazem de si um simples predador do futuro da escola
pública.
Se
se sentir injustiçado com a argumentação que se segue, tenha a coragem de
marcar o contraditório, a que não me furto.
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Por
uma vez, saia do conforto dos seus indefectíveis, porque é pena que nenhuma
televisão o tenha confrontado, ainda, com alguém que lhe dissesse, na cara, o
que a verdade reclama.
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Comecemos pelo programa de Governo a que pertence. Sob a epígrafe “Confiança,
Responsabilidade, Abertura”, garantia-nos que “… nada se fará sem que se firme
um pacto de confiança entre o Governo e os portugueses … “ e asseverava, logo
de seguida, que desenvolveria connosco uma “relação adulta” (página 3). E que
outra relação, senão adulta, seria admissível? O que se seguiu foi violento,
mas esclarecedor.
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O
homem que havia interrogado o país sobre a continuidade de um primeiro-ministro
que mentia, referindo-se a Sócrates, rápido se revelou mais mentiroso que o
antecessor. E o senhor foi igualmente célere em esquecer tudo o que tinha
afirmado enquanto crítico do sistema.
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Não
me refiro ao que escreveu e disse quando era membro da Comissão Permanente do
Conselho Nacional da UDP. Falo daquilo que defendia no “Plano Inclinado”, pouco
tempo antes de ser ministro.
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Ambos,
Passos Coelho e o senhor, rapidamente me reconduziram a Torga, que parafraseio:
não há entendimento possível entre nós; separa-nos um fosso da largura da
verdade; ouvir-vos é ouvir papagaios insinceros.
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Para o Governo a que o senhor pertence, a Educação é uma inevitabilidade, que
não uma necessidade. Ao mesmo tempo que a OCDE nos arruma na cauda dos países
com maiores desigualdades sociais, lembrando-nos que só o investimento precoce
nas pessoas promove o desenvolvimento das sociedades, Passos Coelho
encarregou-o, e o senhor aceitou, de recuperar o horizonte de Salazar e de a
reduzir a uma lógica melhorada do aprender a ler, escrever e contar. Sob a visão estreita de ambos, estamos hoje,
em relação a ela, com a mais baixa taxa de esforço do país em 38 anos de
democracia.
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O conflito insanável entre Crato crítico e Crato ministro foi eloquentemente
explicado no último domingo de Julho de 2011, no programa do seu amigo,
professor Marcelo. Sujeito a perguntas indigentes, o senhor só falou, sem nada
dizer, com uma excepção: estabeleceu bem a diferença entre estar no Governo e
estar de fora.
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Quando
se está no Governo, afirmou, “tem de se saber fazer as coisas”; quando se está
de fora, esclareceu, apresentam-se “críticas e sugestões, independentemente da
oportunidade”. Fiquei esclarecido e acedi ao seu pedido, implícito, para
arquivarmos o crítico.
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Mas
é tempo de recordar algumas coisas que tem sabido fazer e que relações adultas
estabeleceu connosco.
A
sua pérola maior é o prolixo documento com que vai provocar a desorganização do
próximo ano lectivo, marcado pela obsessão de despedir professores.
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Autocraticamente,
o senhor aumentou o horário de trabalho dos professores, redefinindo o que se
entende por tempos lectivos; reduziu brutalmente as horas disponíveis para
gerir as escolas, efeito que será ampliado pela loucura dos giga-agrupamentos;
cortou o tempo, que já era exíguo, para os professores exercerem as direcções
das turmas; amputou um tempo ao desporto escolar; e determinou que os docentes
passem a poder leccionar qualquer disciplina, de ciclos ou níveis diferentes,
independentemente do grupo de recrutamento, desde que exista “certificação de
idoneidade”, forma prosaica de dizer que vale tudo logo que os directores alinhem.
Consegue dormir tranquilo, desalmado que se apresenta, perante um cenário de
despedimento de milhares de professores?
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O despacho em apreço bolsa autonomia de cada artigo. Mas é uma autonomia
cínica, como todas as suas políticas. Uma autonomia decretada, envenenada por
normas, disposições, critérios e limites.
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Uma
autonomia centralizadora, reguladora, castradora, afinal tão ao jeito do
marxismo-leninismo em que o senhor debutou politicamente. Poupe-nos ao disfarce
de transferir para o director (que não é a escola), competências blindadas por
uma burocracia refinada, que dizia querer implodir e que chega ao supino da
cretinice com a fórmula com que passará à imortalidade kafkiana: CT=K x CAP + EFI + T, em que K é um factor inerente às características da escola,
CAP um indicador da capacidade de gestão de recursos
humanos, EFI um indicador de eficácia educativa (pergunte-se ao diabo ou ao
Tiririca o que isso é) e T um parâmetro resultante do número de turmas da
escola ou agrupamento. Por menos, mentes sãs foram exiladas em manicómios.
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Senhor ministro, vai adiantada esta carta, mas a sua “reorganização curricular”
não passará por entre as minhas linhas como tem passado de fininho pela bonomia
da comunicação social.
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O
rigor que apregoa mas não pratica, teria imposto o único processo sério que
todos conhecem: primeiro ter-se-iam definido as metas de chegada para os
diferentes ciclos do sistema de ensino; depois, ter-se-ia desenhado a matriz
das disciplinas adequadas e os programas respectivos; e só no fim nos
ocuparíamos das cargas horárias que os cumprissem.
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O
senhor inverteu levianamente o processo e actuou como um sapateiro a quem
obrigassem a decidir sobre currículo: fixou as horas lectivas e anunciou que ia
pensar nas metas, sem tocar nos programas.
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Lamento
a crueza mas o senhor, que sobranceiramente chamou ocultas às ciências da
educação, perdeu a face e virou bruxo no momento de actuar: simplesmente achou.
O que a propósito disse foi vago e inaceitavelmente simplista.
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O
que são “disciplinas estruturantes” e por que são as que o senhor decretou e
não outras? Quais são os “conhecimentos fundamentais”?
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O
que são o “ensino moderno e exigente” ou a “redução do controlo central do
sistema educativo”, senão versões novas do “eduquês”, agora em dialecto
“cratês”? Mas o seu fito não escapa, naturalmente, aos que estão atentos:
despedir e subtrair à Educação para adicionar à banca.
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Duas palavras, senhor ministro, sobre o Estatuto do Aluno. É preciso topete
para lhe acrescentar a Ética Escolar. Lembra-se da sua primeira medida, visando
alunos? Eu recordo-lha: foi abolir o prémio para os melhores, instituído pelo
Governo anterior.
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Quando
o senhor revogou, já os factos que obrigavam ao cumprimento do prometido se
tinham verificado. O senhor podia revogar para futuro. Mas não podia deixar de
cumprir o que estava vencido.
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Que
aconteceu à ética quando retirou, na véspera de serem recebidos, os prémios
prometidos aos alunos? Que ética lhe permitiu que a solidariedade fosse imposta
por decreto e assente na espoliação?
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Que
imagem da justiça e do rigor terão retirado os alunos, os melhores e os seus
colegas, do comportamento de que os primeiros foram vítimas?
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Terão
ou não sobeja razão para não acreditarem nos que governam e para lamentarem a
confiança que dispensaram aos professores que, durante 12 anos, lhes ensinaram
que a primeira obrigação das pessoas sérias é honrar os compromissos assumidos?
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Não
é isso o que os senhores hoje invocam quando reverenciam Sua Santidade a
Troika? Da sua ética voltámos a dar nota quando obrigou jovens com necessidades
educativas especiais a sujeitarem-se a exames nacionais, em circunstâncias que
não respeitam o seu perfil de funcionalidade, com o cinismo cauteloso de os
retirar depois do tratamento estatístico dos resultados.
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Ou
quando, dias antes das inscrições nos exames do 12º ano, mudou as respectivas
regras, ferindo de morte a confiança que qualquer estudante devia ter no
Estado. Ou, ainda, quando, por mais acertada que fosse a mudança, ela ocorreu a
mais de meio do ano-lectivo (condições de acesso ao ensino superior por parte
de alunos do ensino recorrente).
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Compreenderá
que sorria ironicamente quando acrescenta a Ética Escolar a um Estatuto do
Aluno assente no castigo, forma populista de banir os sintomas sem a mínima
preocupação de identificar as causas.
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Reconheço,
todavia, a sua coerência neste campo: retirar os livros escolares a quem falta
em excesso ou multar quem não quer ir à escola e não tem dinheiro para pagar a
multa, fará tanto pela qualidade da Educação como dar mais meios às escolas que
tiverem melhores resultados e retirá-los às que exibam dificuldades.
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Perdoar-me-á
a franqueza, mas vejo-o como um relapso preguiçoso político, que não sabe o que
é uma escola nem procurou aprender algo útil neste ano de funções.